segunda-feira, 30 de junho de 2008

Dos homens de temperamento sórdido


O império chinês está chegando...
Autoritário, neurótico, inumano.
São os filhos da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung
e dos carros armados que comandaram, em Pequim,
o massacre na Praça Tienanmen em 4 junho de 89:
ao menos 1300 estudantes mortos.
As Mães da Praça de Tienanmen
lutam para que o governo revele o exato número de vítimas
e a versão oficial dos fatos daquela noite
que 19 anos depois ainda são tidos como segredos de Estado.

O reich chinês está chegando...
São os filhos do Socialismo de Mercado,
da mão-de-obra semi-escravista,
e da mais-valia rebatizada.
Estão ocupando as grandes cidades mundiais.
Comprando apartamentos, investindo em negócios vários.
Paris, Madrid, Roma, Berlim, Londres, Sidney, São Paulo, N.Y.
A neurose da rentabilidade e a histeria do consumo
caracterizam os filhos ocidentalizados da China Miliária.
Eles caminham pelo mundo com all star no pé e filmadora na mão,
capturam tudo o que vêem, devoram imagens e mercadorias.

No reich chinês o mandarim não será a língua oficial
porque os jovens filhos da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung
querem mesmo é ser ocidentais.
O império chinês será o filho insurgente do império americano, que
preocupado, já está tentando desmoralizá-lo.
Por isso a liderança na campanha internacional a favor do Tibet.
Há sempre que desconfiar dos discursos libertatórios norte-americanos porque as reais entrelinhas são sempre metonimizadas:
Bin Laden, Saddam Hussein, Hugo Cháves, Farc’s, Irã nuclear...e Tibet.

O reich chinês será o filho insurgente do império americano;
E Bush, a bucha de canhão dos tanques armados dirigidos
contra os futuros protestos estudantis nas praças internacionais.

(Imagem: clássica foto de um rapaz à frente dos tanques a caminho da Praça Tienanmen, em Pequim)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O incesto simbólico de Pasolini


“Édipo Rei” de Pasolini, filme realizado em 1967, pretende ser fundamentalmente a elaboração de uma lenda, e não a ilustração de um mito. Esta lenda que Pasolini intenta construir em seu filme é a sua própria história, uma auto-biografia simbólica. Figurinos e cenários idealizados, constantes referências de uma cultura popular campesina, paisagens da região de Friuli, onde Pasolini passou a sua infância, e depois Bolonha, onde o artista começou a escrever os seus primeiros poemas. “Édipo Rei” evoca simultaneamente o mito (fatalidade) e o complexo freudiano (amor pela mãe) que são criações culturais cronologicamente distintas, mas que Pasolini sintetiza para resolver as suas contradições. Em “Édipo Rei” Pasolini se confronta com a literatura e a psicanálise, e com o seu próprio complexo de Édipo. O amor puro, obsessivo e mítico pela mãe é um dos sentimentos pasolinianos que mais me emocionam. A escolha do artista em ter a mãe interpretando a Virgem Maria em seu filme "O Evangelho Segundo São Matheus" é a metaforização explícita do seu afeto por ela. Um sentimento exposto tantas vezes, em diversas linguagens, mas infinitamente incompreendido pela sociedade italiana de então, catolicamente provinciana. Erotismo sacro e modernidade lingüística são marcas deste artista acossado, porque profético, humanista e homossexual.

Eu comentei sobre o filme para introduzir outra obra em que Pasolini declara seu amor incestuosamente sagrado pela mãe: é o poema “Supplica a mia madre”, presente no livro “Poesia in forma di rosa”, lançado pela primeira vez na Itália em 1964. Abaixo transcrevo o poema (traduzi ao português, mas deixo-o também em italiano, caso algum leitor o deseje ler na língua original). Com esta postagem cumpro a homenagem que há tempos queria dedicar ao sentimento incompreendido deste artista que admiro tanto.

Súplica a minha mãe, de Pier Paolo Pasolini

É difícil dizer com palavras de filho
aquilo que no coração se parece bem pouco comigo.

Tu és a única no mundo que sabe daquilo que no meu coração
existiu sempre, antes de qualquer outro amor.

Por isso devo dizer-te aquilo que é horrível reconhecer:
é na tua graça que nasce a minha angústia.

És insubstituível. Por isso é condenada
à solidão a vida que me deste.

E não quero ser sozinho. Tenho uma infinita fome
de amor, do amor de corpos sem alma.

Porque a alma está em ti, és tu, mas tu
és minha mãe e o teu amor é a minha escravidão:

Passei a infância escravo deste sentimento
elevado, irremediável, de uma diligência imensa.

Era o único modo de sentir a vida
única tinta, única forma: agora terminou.

Sobrevivemos: e é a desordem
de uma vida renascida fora da razão

Suplico-te, ah, suplico-te: não queiras morrer.
Estou aqui, sozinho, contigo, em um futuro abril
...

(Tradução: Anahí Borges. Imagem: Pasolini com a mãe)

Supplica a mia madre

É difficile dire com parole di figlio
ciò a cui nel cuore ben poco assomiglio.

Tu sei la sola al mondo che sa, del mio cuore,
ciò che è stato sempre, prima d’ogni altro amore.

Per questo devo dirti ciò ch’è orrendo conoscere:
è dentro la tua grazia che nasce la mia angoscia.

Sei insostituibile. Per questo è dannata
alla solitudine la vita che mi hai data.

E non voglio esser solo. Ho un’infinita fame
d’amore, dell’amore di corpi senza anima.

Perché l’anima è in te, sei tu, ma tu
sei mia madre e il tuo amore è la mia schiavitù:

ho passatol’infanzia schiavo di questo senso
alto, irrimediabile, di un impegno immenso.

Era l’unico modo per sentire la vita,
l’unica tinta, l’unica forma: ora è finita.

Sopravviviamo: ed è la confusione
di una vita rinata fuori dalla ragione.

Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire.
Sono qui, solo, con te, in un futuro aprile...

domingo, 22 de junho de 2008

Fim de romance



Era final de tarde. Havia um vento forte, daqueles que te faz perder o centro do passo. Levanta a saia, despenteia os cabelos, vira as páginas do livro carregado no braço. Eu caminhava titubeante quando vi um corvo que voava esquivando-se do tráfico aéreo de andorinhas. Na primavera mediterrânea as andorinhas se divertem em quotidianos malabarismos atmosféricos. O tal do corvo voava tranqüilo, as asas abertas e aplainadas estavam preparadas para uma eventual aterrissagem de emergência. Os corvos são animais sérios,frequentemente mal-humorados, e sempre em alerta. Naquele caos aéreo de andorinhas, o corvo se apaixonou por uma "corva" que vinha em sentido diagonal ao seu. Amor à primeira vista. Eu vi o seu esforço em tentar alcançá-la, mas o vento forte parecia boicotá-lo: o corvo ia, subia, descia, pendulava. A "corva" também se entusiasmou, mas igualmente não conseguia chegar até o seu companheiro. Eu vi quando os dois corvos ansiosamente apaixonados batiam as asas velozmente, agitadas, mas parados no lugar a menos de um metro de distância um do outro porque o vento forte os rebatia. Olhavam-se frente a frente e lutavam contra a ventania que instituía uma barreira transparente e autoritária na atmosfera primaveril. Até que desistiram, resignados, e cada um seguiu seu vôo. As andorinhas-acrobáticas se divertiam com o vento mediterrâneo. A primavera italiana é uma época lúdica, ligeira, perfeita à folia das andorinhas. Não é a estação propícia ao amor bem-composto dos corvos.

(Imagem: Campo de trigos com corvos. Van Gogh, 1890)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O tal luxo de Maria Rita Kehl

Claro que sinto saudades do Brasil! Mas se existe algo que categoricamente afirmo ser melhor aqui do que lá é: a possibilidade de estar tranqüilo pela rua. Mamma mia! Mesmo com as notícias bombásticas de violência diária promovidas pelos jornais de orientação berlusconiana para denegrir a imagem dos imigrados na Itália, fato é que em Roma existe a tranqüilidade em sair de casa. A cultura do medo e da violência que existe no Brasil é a minha escravidão, a neurose que inoportunamente disciplina a minha vida paulistana. Conversando com um amigo a respeito, que vivendo em Madrid também tem a mesma impressão, soube do texto de Maria Rita Kehl chamado "Você tem medo de quê?" no qual reflete sobre esta questão. É um texto essencial para se compreender como a tranqüilidade é considerada hoje um privilégio e que, na verdade, viver com medo que é uma grande humilhação. Abaixo transcrevo alguns fragmentos:

"Vou direto ao ponto: estive em Paris. Está dito e precisava ser dito, logo verão por quê. Mas é difícil escapar à impressão de pedantismo ou de exibicionismo ao dizer isto.
Culpa da nossa velha francofilia (...) Se eu disser “fui a Paris”, o interlocutor responderá sempre: “que luxo!”. E se contar: “fui assaltada em Paris”, ou “fui atropelada em Paris”, é bem provável que escute: “mas que luxo, ser assaltada (atropelada) em Paris!”".
(...)
"É um verdadeiro luxo, Paris. Não por causa do Louvre, da Place Vêndome ou dos Champs Élisées. Nem pelas mercadorias todas, lindas, chiques, caras, que nem penso em trazer para casa. Meu luxo é andar nas ruas, a qualquer hora da noite ou do dia, sozinha ou acompanhada, a pé, de ônibus ou de metrô (nunca de táxi) e não sentir medo de nada. Melhor: de ninguém. Meu luxo é enfrentar sem medo o corpo a corpo com a cidade, com a multidão".
(...)
"O artigo de luxo que eu traria de Paris para a vida no Brasil, se eu pudesse – artigo que não se globalizou, ao contrário, a cada dia fica mais raro e caro – seria este. O luxo de viver sem medo. Sem medo de que? De doenças? Da velhice? Da morte, da solidão? Não, estes medos fazem parte da condição humana".
(..)
"O luxo de viver sem medo a que me refiro é bem outro. O de circular na cidade sem temer o semelhante, sem que o fantasma de um encontro violento esteja sempre presente. Não escrevi “viver numa sociedade sem violência”, já que a violência é parte integrante da vida social. Basta que a expectativa da violência não predomine sobre todas as outras". (...)

PS – para ler o texto na íntegra clique: http://www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=175

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Caminho de Kiarostami


"Caminho de Kiarostami com cachorro no Parco Appia Antica". Anahí Borges, Roma, 09.06.2008

Passei pela Via Camilla e as ameixas ainda estavam lá, penduradas nos galhos da árvore. Por quê será que ninguém sobe no pé para colhê-las? Havia algumas que bastava só esticar o braço para pegar. O mesmo com a mexerica poncán e as amoras. Por Roma existem espalhadas diversas árvores de frutas: ameixeiras nas calçadas, amoreiras nas praças, nos parques, mexeriqueiras nos canteiros do meio das avenidas. Fruto carnudo, suculento, parece doce. Dão às pencas e o peso faz os galhos caírem na altura dos olhos de quem está caminhando por ali. Adultos que vão para o trabalho, jovens para a faculdade, crianças para a escola, idosos que passeiam no final da tarde com o cachorro: as pessoas passam e as frutas permanecem lá, intactas, abandonadas, apodrecidas. Não sei se esta é uma conduta cultural - a fruta na rua é enfeite da cidade e comida de passarinho -, ou se é um gesto-síntese da vida moderno-urbana, categoricamente divorciada da natureza, e que, portanto poderia se manifestar em qualquer outra metrópole. Se assim o é, ousaria dizer que não sou uma pessoa urbana, ou melhor, que a minha urbanidade há necessidade-imperativa da natureza. Talvez por isso goste tanto dos filmes de Abbas Kiarostami, porque conjugam melancolia bucolista com manifestações modernas (de urbanidade precária) – cidade, asfalto, cinema, automóvel. “O Vento nos Levará”, “Através das Oliveiras”, “O Gosto da Cereja”, “A Vida Continua”... Quando ando pelos lugares, volta e meia encontro um caminho de Kiarostami e começo a imaginar as personagens de seus filmes percorrendo-o a pé, correndo, ou dentro do automóvel contemporâneo. Nos enquadramentos de Kiarostami: o encontro do homem com a natureza.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Um americano em Roma


É, sem dúvida, uma comédia italiana inesquecível. Dirigida por Steno em 1954, “Um Americano em Roma” conjuga comicidade e afiada sátira de costumes. No Pós-Segunda Guerra Mundial, a Itália renasce com o capital americano. A imagem da força, riqueza e liberdade dos norte-americanos que desembarcaram na Itália no final da guerra permanecerá por anos na mente dos italianos, definindo um novo desenho para os costumes do país. A cultura itálica se americaniza e Alberto Sordi interpreta no filme a personagem hilariante de Nando, um italiano-americanizado, que na impossibilidade de se mudar para os Estados Unidos contextualiza os seus hábitos importados em Roma. Roupas, músicas, gestos, baseball, comida, Nando vive como um ianque, como se estivesse dentro de um filme hollywoodiano.

Um americano em Roma. 68 anos depois...

O Bucha de canhão chegou! O Bucha de canhão chegou!

O presidente dos Estados Unidos chegou a Roma esta manhã, o que gerou um caos por toda a cidade. Trânsito, bloqueios, polícia - medidas de proteção necessárias para o chefe de Estado mais detestado do mundo. Buzinas e apitos pareciam ser as armas de um enorme cortejo de manifestação contra a sua presença, mas rapidamente revelaram ser a impaciência do trabalhador-romano-médio parado tanto tempo no trânsito. Contestação? Até que teve, mas singela, grupo pequeno, simbólico. O italiano-médio, há 68 anos americanizado, votou em Berlusconi na eleição de abril, e por isso o Bucha de Canhão está em Roma: para formalizar as alianças entre ambos os países. O Corriere della Sera de hoje comentou sobre a antiga amizade e alinhamento entre Bush e o Berlusca. E, sinceramente, o premier italiano nunca escondeu seu talento em ser um americano-médio.

Um Bush em Roma está negociando com Berlusconi a “questão nuclear do Irã” e a manutenção do seu Império. Durante seu encontro com alunos italianos bolsistas na American Academy, o presidente ianque disse sobre seu país e sua política: “infelizmente existem muitas representações caricaturadas, muita ignorância e propaganda”. E prosseguiu: “A verdade é que somos um país solidário e aberto, e temos no coração o destino das pessoas...” (Publicado no Corriere della Sera). Esta frase caberia perfeitamente na boca de Alberto Sordi interpretando o presidente dos Estados Unidos em uma comédia italiana clássica. Mas infelizmente o Bucha de Canhão não é ficção, embora tudo o resto o seja: Bin Laden, a luta ao terrorismo, as justificativas para a atual intervenção na América Latina contra as Farc, a razão de ser do Plano Colômbia, a utilidade da 4ª frota na América Latina do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, etc. Tudo ficção, falsidade, manipulação... Tragédia! Melodrama! Ação! Suspense! Terror! O Bucha de Canhão não tem mesmo talento para comédias. . .

terça-feira, 10 de junho de 2008

Gay Pride 2008.d.C


A 14ª edição do Gay Pride romano aconteceu no último sábado e reuniu 500 mil pessoas. Durante toda a semana alguns focos de tensão pontuaram a relação das entidades de representação GLBTS com o novo governo de direita de Gianni Alemanno , candidato pela Coligação de Berlusconi e eleito prefeito de Roma em abril. Dentre algumas questões denunciadas por membros da organização do Gay Pride como medidas políticas retrógradas e moralistas desse novo governo estavam : a solicitação para que os manifestantes se comportassem bem na passeata, vestindo-se adequadamente, ou seja, nada de nudez e exageros cromáticos e a modificação do tradicional percurso do evento. A mudança de trajeto foi justificada pelo fato de que a Basílica Laterana, situada na Piazza San Giovanni, habitual ponto final da manifestação, realizaria uma apresentação do seu coral às 20.30h e, deste modo não cairia bem misturar os guetos.

Enfim, e apesar de tudo, o Gay Pride aconteceu. Manifestantes recordavam no alto falante dos carros de som que o Vaticano é um Estado autônomo dentro do território itálico, e que, portanto, a Itália deveria se libertar da escravidão católica. Caminhar aos gritos de liberdade e igualdade pela Via dei Fori Imperiali, atravessando as ruínas do antigo Império Romano, o Coliseu, templos, arcos, e tantos outros monumentos históricos é uma experiência peculiar, caótica, mística. Marchar ao som da música eletrônica e da aclamação política intercaladas com os sinos de tantas igrejas que badalam pontualmente às 17h e 18h é sem dúvida uma vivência insólita. Centenas de turistas nas calçadas, parados, obcecados em tirar fotos. Manifestantes e monumentos históricos eram uma coisa só aos olhos dos turistas consumidores de imagens. Europeus e chineses com suas câmeras fotográficas e filmadoras se misturavam com jornalistas e repórteres que transmitiam o evento ao vivo pela televisão. A passeata teve seu fim na Piazza Navona, onde inclusive está o palácio de estilo neo-clássico da Embaixada Brasileira. No palco montado, o evento foi encerrado por representantes de diversas organizações GLBTS que hastearam suas bandeiras de lutas e energicamente proclamaram discursos em defesa da paridade e dignidade sexuais e pela laicidade do Estado.

Jogado no chão, entre os paralelepípedos da praça, encontrei um flyer de uma organização chamada gaytoday. Transcrevo-o logo abaixo, exatamente como é, com as suas sete cores:

Todos os gays são sensíveis
Todas as lésbicas são caminhoneiras
Todos os gays são ricos
Todos os filhos de gays serão gays
Todas as trans são prostitutas
Todas as lésbicas têm as unhas curtas
Todos os gays são de esquerda
Todas as lésbicas jogam futebol
Os bissexuais não existem
Todos os homofóbicos são heteros
Todo Gay Pride é carnaval
Os gays [NÃO] são todos iguais!
E você, que gay é?

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sobre "Gomorra"

O filme de Matteo Garrone adaptado do best-seller italiano "Gomorra", de Roberto Saviano, foi contemplado no último Festival de Cannes com o Grande Prêmio da Crítica. Na Itália o filme está sendo um fenômeno: até o último domingo, "Gomorra" já havia acumulado uma bilheteria de 6.630.000,00 euros.
Escrevi um artigo sobre o filme na Cinequanon.
Clique: http://www.cinequanon.art.br

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Gânsgster Van-Goghiano

Encontrei-o no metrô e já estava faltando um pedaço da orelha. Bem aqui, sabe, no altinho. Aqui ó: nessa parte durinha. Havia um corte diagonal, perfeito, e faltava um pedaço no alto. Arriscaria dizer que levaram embora um quarto da sua orelha, não sei não. O homem tem cara de quem usava um piercing ali, uma argola, um brilhante, mas agora não pode mais usar. O talho era perfeito, reto, profissionalmente cirúrgico, parece que foi feito com uma serra elétrica de fatiar o pernil de Natal. Quando o encontrei ele estava de pé, parado na porta do trem com o olhar fixo nas coisas que passavam velozes do lado de fora. Todos ali ao redor olhavam curiosos a sua orelha sem pedaço e reconstruíram em silêncio um filme privado na mente. Talvez ele já tenha nascido assim, mutação genética mesmo. Ou então o piercing que usava na orelha inflamou, cancronou e tiveram que arrancar o pedaço zuado. Para boxeador o sujeito não tem porte e dizer que morderam um pedaço da sua orelha no ring não convence. A autopenitência ao cortar a própria orelha como Van Gogh, é possível, não descarto. Mas se tenho que escolher, de todas as possibilidades narrativas fico com o filme de gânster e na minha tela gigante (wall to wall) esse personagem é ligado à Camorra e aquilo ali foi tortura...

domingo, 1 de junho de 2008

Eu no quadro de Gauguin


Improvisadamente aconteceu que de roteirista passei à atriz do curta-metragem que rodamos esta semana. Uma história ambientada em um camping, personagens icônicas, mitológicas, quadros fixos coloridos, mundo pictórico. Meu amigo Pasquale, o diretor, possui o imaginário Pasolini-felliniano. Bellissimo! Escrevemos o roteiro em um processo amistosamente colaborativo no qual participamos: dois roteiristas, o diretor e o montador. No set, o fotógrafo reclamou da presença inútil dos roteiristas. O montador também no set. Raridade! “Mah che cazzo! A che servono questi?”. E a trupe unida não arredava o pé. E eis que a atriz que faria a mulher saindo da barraca não veio, e sobrou para mim! Assim como o ator que faria o bêbado não compareceu e sobrou para o outro roteirista interpretá-lo, resultando uma personagem incrível.

A câmera Arri 35mm apontada na minha cara, dezenas de pessoas ao redor me olhando. Minha primeira imagem estampada em 35, improvisada. A claquete. Azione! Realizamos o curta no Parco dell’Acquedotto onde Pasolini filmou o Mamma Roma há mais de quarenta anos. Eu estava ali no set utilizado uma vez pelo meu ídolo-amado-sagrado. Meu coração debandado. Eu deveria estar olhando o camping que amanhecia em um dia de sol. Improvisei um chiclete, o galhinho de grama era a minha distração, inventei alguém que passava e meu olhar matinal que a acompanhava, me lembro do vento e da minha vontade tímida de rir.

Funcionou, o pessoal gostou. Sério mesmo? Perguntei insegura. Disseram que a composição da imagem parecia um quadro do Gauguin. E então refleti sobre esse meu não fazer nada que resultou num gesto minimalista espontâneo, e que deu certo. O minimalismo é para mim a grande força no cinema. Estar ali foi uma experiência particular de pensar, através da vivência, no detalhe na imagem em um plano próximo: cada pequeno gesto pode ser um exagero, e o diretor que trabalha com um ator na chave do “agora vamos interpretar” é aquele que mata o cinema. Depois que eu e o Andrea substituímos os atores ausentes, Pasquale ainda brincou com o fotógrafo que reclamou da nossa presença no set: “É, viu, até que é útil haver roteiristas no set”. E todos riram.

(Foto de Mauro Rossi)