quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Macunaíma (re)engolido pelo gigante


E pela emancipação brasileira da primazia do retrato do colonizado



PS - o texto também foi publicado na Cinequanon

O Festival Internacional de Cinema de Roma inaugurou a sua terceira edição na quarta-feira, 22.10, com uma festa brasileira na Piazza Navona. Com direção artística do gringo da Tropicália Arto Lindsay e cenografia do artista plástico brasileiro Ernesto Neto o evento contou com a participação de Vanessa da Mata e os blocos Ilê Aiyê e Spok Frevo Orquestra. Um carnaval brasileiro de outono em Roma era a proposta da curadora da sessão Focus sul Brasile, Gaia Morrione, para a abertura do festival de cinema que está se afirmando no país. Quando começou se chamava Festa Internazionale di Roma e este ano mudou o nome para Festival Internazionale del Cinema di Roma. O evento está alçando vôos... mas a linha ideológica permanece a mesma: uma festa de cinema popular, com filmes que agradam o grande público (existe também o panorama “outro cinema”, com curadoria de Mario Sesti, que oferece ao espectador filmes mais experimentais). A premiação é decidida pelo voto do público e no ano passado o filme vencedor foi o americano “Juno”, de Jason Reitman.

Muito bem, e nesta história toda o que tem a ver o carnaval brasileiro em pleno outono na Piazza Navona? Pois bem, desde o ano passado o festival dedica um panorama à tradição de um determinado país. A intenção verbalizada pela curadora Gaia Morrone é a de recolher fragmentos que considera significativos da cultura deste país e apresentá-los ao público através de eventos cinematográficos e musicais, debates, mostras, etc. O ano passado o Focus foi a Índia e este ano esta sendo a vez do Brasilzão mostrar a sua cara para os gringos. Vai que é sua Brasil il il il ! Sejamos claros: em poucas palavras, esta sessão se mostra interessada em revelar o exotismo de países emergentes com quem a Itália mantém relações econômicas, sociais e culturais. Aliás, quantos imigrantes indianos existem no país? E brasileiros? A escolha da nação homenageada na sessão Focus não é, portanto, algo casual. Além disso, propõe de maneira ostensiva um olhar comercialmente vulgar sobre a vitalidade, a criatividade e a contemporaneidade na produção artística de nações classificadas como terceiro-mundistas. Não é à toa, portanto, que tais iniciativas sejam taxadas pelo próprio público europeu como “evento étnico” (termo inventado pelos anglo-saxões para deslegitimar as manifestações artísticas da periferia do capital).

Voltando ao Focus sul Brasilzão: qual seria a previsibilidade em um evento dedicado ao Brasil no exterior? Quais seriam as temáticas predominantes que se consideram dignas de serem as nossas porta-vozes internacionais? Futebol, favelas, samba, carnaval, bossa-nova e candomblé? Acertou. Além disso, Caetano Veloso para os mais cults. Esta é a festa do Brasil na Festa do Cinema de Roma. Predominantemente banal e financiada pelo Ministério da Cultura brasileiro e Ancine.

No que diz respeito ao cinema. Perante o quadro da produção cinematográfica abundante e plural que caracteriza nossos últimos anos (sábado foi publicado na "Folha de SP" que só a Mostra de Cinema de SP este ano está exibindo 70 filmes brasileiros), a curadoria romana, auxiliada pelos críticos brasileiros Pedro Butcher e José Carlos Avellar, priorizou documentários sobre nossos artistas e intelectuais. De 22 filmes selecionados para representar o Brasil em Roma, 15 são documentários dentre os quais 12 são focados em expoentes de nossa música popular brasileira e de nossa produção intelectual. Não pretendo de maneira alguma deslegitimar tais documentários de representarem dignamente o nosso cinema, e tampouco questionar as suas qualidades artísticas. A questão que merece ser apontada nesta seleção é a sua abominável ideologia: escolhas que explicitam o caráter didático e mercantilista da curadoria tendo por fim a exportação da música popular brasileira, principalmente, e a reiteração de nossos estereótipos culturais. Uma curadoria, portanto, que não pretendeu estimar o cinema brasileiro, que passou longe de Beto Brant, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Lais Bodansky, para citar alguns nomes importantes da cena contemporânea, e preferiu investir na divulgação vulgar de expoentes (ainda que magistrais) da nossa cultura. Para se camuflar a sessão recebeu o timbre de Retrospectiva e está ostentando nas telas italianas todos os nossos estigmas, com a funesta desculpa de querer educar o público ignorante. A lista é farta: documentário sobre futebol, sobre Tom Jobim, sobre a bossa-nova, sobre Vinícius de Moraes; documentário sobre Paulinho da Viola, sobre Nelson Freire, sobre Sérgio Buarque de Holanda, sobre Tom Zé; documentário sobre o tal império baiano: Caetano Veloso, que também realizou um show na cidade, sobre Maria Bethânia e outro ainda sobre os Doces Bárbaros (além da ficção “Ó Pai Ó”, puro axé e exotismo no Pelourinho, produzido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne, que também assina a produção do documentário sobre o ex-marido); tem também documentário sobre Oscar Niemayer e sobre o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, que apesar de tudo, é merecidamente homenageado com a exposição de suas fotografias realizadas no nordeste brasileiro nos anos 40 e 50.

Sei que vivo a contradição do meu nacionalismo. Não posso negar a ostensiva emoção que sinto ao reassistir a estes documentários em sala estrangeira, seja porque admiro a qualidade de seus discursos estéticos, seja porque revivo com eles a minha história cultural. Não posso ignorar o orgulho que experimento quando presencio a divulgação de meus ídolos conterrâneos em território internacional. Mas apesar de nacionalista não sou estúpida. Não posso concordar com a instrumentalização do cinema brasileiro, com a sua subjugação por uma curadoria pouco disposta a valorizá-lo e muito interessada em estigmatizá-lo. Apesar de patriota não posso consentir que fortaleçamos para as consciências internacionais o retrato do colonizado, como o define Albert Memmi em seu ensaio “O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador”. Neste sentido, esta mesma curadoria possui duas inexoráveis facetas. Uma é a italiana, que reproduz o retrato do colonizador e não se constrange por isso. Ao contrário, faz questão de sublinhar o caráter étnico do evento. A outra faceta, no entanto, é mais grave: é aquela representada pelos membros brasileiros cujos nomes foram anteriormente citados. Essa curadoria tropical revela em si uma nociva e mítica contradição: ao selecionar obras que divulgam nossos artistas e nossa cultura no velho continente, ou seja, a ação quimérica de tentar extinguir nosso anonimato e nos inserir no centro do capital, tragicamente reproduziu o retrato do colonizado. O que esta curadoria fez através do nosso cinema foi enfatizar os estereótipos culturais que nos mantém atrelados à condição de nação colonizada, subdesenvolvida, e, portanto, à margem do capital. Na festa do Cinema de Roma o Brasil comemora o seu complexo de dependência, sua colonizabilidade. No carnaval do cinema de Roma não é dia de festa não senhor!

(Imagem: Urutu. Tarsila do Amaral, 1928)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

"Mamma Roma"


Mamma Roma. Pier Paolo Pasolini, 1962.

Um filme humanista

Mamma Roma é um filme notoriamente humanista que personifica na figura de uma prostituta e seu filho o drama do subproletariado italiano dos anos 60. A prostituta é Mamma Roma, interpretada por Anna Magnani. Uma mulher enérgica, explosiva, que sonha se libertar da opressão de seu cafetão e reaver um relacionamento profundo com seu filho Ettore. Mamma Roma saiu do campo e foi para capital romana. Lá trabalha numa banca de legumes e de vez em quando se prostitui por exigência de Carmine, o gigolô. Todo seu investimento financeiro e emocional é voltado para Ettore: matricula-o num colégio, arranja-lhe trabalho, compra-lhe presentes, dá-lhe dinheiro, cuidado, amor. Mamma Roma é a mãe apaixonada que se sacrifica por seu filho.
Ettore é um garoto abandonado de si mesmo. Não se interessa por nada que o mundo lhe possa oferecer. Larga a escola e o emprego que a mãe lhe arranjou. Caminha pela cidade com seu grupo de adolescentes marginais. A única coisa que mobiliza a personagem é a paixão que sente por Bruna, uma garota sexualmente liberada.

A narrativa se desenrola a partir da relação mãe e filho, dos conflitos, sentimentos e expectativas que surgem desse embate, considerando, evidentemente, tratar-se de personagens de baixos estratos sociais.

A história se passa na periferia de Roma. As personagens, assim como aquelas dos filmes neo-realistas, perambulam pelas ruas. Nessa perambulação, a câmera focaliza detalhes arquitetônicos e sociais da cidade: cortiços, ruas, praças, monumentos, comércio, etc. Alguns registros são quase documentais. É o caso, por exemplo, da cena em que Ettore vende os discos da mãe num comércio ilegal: o cenário naturalista e o modo como o comerciante negocia a mercadoria com o garoto ilustram uma realidade existente na então periferia de Roma.

O humanismo no filme transita entre a denúncia social e a busca de um sentido existencial para o homem. A denuncia social é explicitada pelas más condições de trabalho, moradia e assistencialismo que todas as personagens enfrentam. Seja Mamma Roma, sejam Biancafiore, os amigos de Ettore ou Carmine, todos são condenados por sua classe social. São marginais fadados ao sofrimento, à miséria, à morte. Por outro lado, o filme também apresenta um humanismo filosófico que, alicerçado na concepção de sacralidade, busca significados existenciais para o ser humano. A personagem que mais transita por essa investigação é Ettore. Ele é dono de uma pureza mítica, uma personagem desinteressada dos jogos e necessidades do mundo. Sua candura e romantismo atingem significado quando se envolve com Bruna e tenta protegê-la. Para Ettore, um possível sentido que sua vida possa ter está na paixão que sente pela garota. A cena mais representativa desse humanismo filosófico é a que Ettore dá a Bruna um colar de ouro. Após roubar os discos de sua mãe e vendê-los no comércio, Ettore compra o colar prometido para Bruna. Ao recebê-lo a garota olha o pingente e diz: “Nossa Senhora e o menino Jesus!” e o coloca no pescoço. Um plano próximo de seu colo mostra sua blusa decotada e parte dos seios aparecendo. Bruna é uma garota sexualmente liberada. “Todos conhecem a Bruna, até no Japão já ouviram falar dela”, comenta um amigo de Ettore. No entanto, o garoto em sua inocência simbólica entrega-lhe a Nossa Senhora com o Menino. Essa sacralização da personagem ilustra a visão que Pasolini tem dos marginais: embora veja neles a resultante mortificada das lutas sociais, reconhece, no entanto, que nesta aparente deterioração existe uma peculiar sacralidade.

A estética

O primeiro plano do filme é um plano médio de três porcos arrumados com laços e chapéu sendo empurrados por uma vassoura pelas mãos de uma mulher: é Mamma Roma, que em over diz: “Carmine!”. O plano seguinte é um geral da mesa da festa de casamento de Carmine em que se vêem muitos convidados. A voz over continua: “Carmine, mostra a sua esposa aos nossos irmãos!”. Então, Mamma Roma apresenta os porcos. Carmine responde: “Tá! Os irmãos da Itália?”. Mamma Roma ironiza: “Quê? Qual Itália?”. Essa primeira seqüência é contundente e de um teor político-ideológico forte. Os porcos são apresentados como parentes do noivo. Isso permite uma caracterização animalizada dos camponeses italianos. No entanto, em seguida, os porcos são apresentados como irmãos da Itália e a ironia que se estabelece no diálogo permite associar os animais a figuras de poder italianas. Mas essa idéia ainda é embrionária. Em 1970, Pasolini realizará Pocilga, onde vai relacionar diretamente os porcos à elite nazista (e fascista italiana).

Ainda na seqüência do casamento Pasolini constrói um diálogo a base de cantos. Quando Mamma Roma comenta que a missa católica deveria ser cantada, alguém diz: “Mamma Roma, cante alguma coisa”. Inicia-se então um diálogo cantado entre Mamma Roma, Carmine e Clementine, sua noiva. É um diálogo de ameaças, desabafos e provocações pessoais. É interessante que Pasolini, no início dos anos 50, escreveu um livro chamado “Il sogno di uma cosa” (publicado somente em 62) no qual recria numa linguagem poética o universo camponês, onde a canção tem um papel fundamental. A seqüência comentada acima resgata um pouco desse universo romântico e idealizado que Pasolini construía sobre o campo, presente em muitos poemas oferecidos à sua mãe (camponesa, nascida em Friuli).

A decupagem de Pasolini não valoriza a construção espacial. Em alguns momentos o espectador perde a noção do espaço da cena e a localização das personagens nesse espaço. É o caso da cena do casamento em que diversos planos próximos de pessoas conversando são intercalados com o plano geral do salão. Os planos próximos ficam soltos no espaço e não conseguimos localizar as personagens quando o quadro abre para o geral. No filme é recorrente a continuidade do discurso ser simultânea à descontinuidade espacial...
Outra característica marcante da decupagem de Pasolini é a valorização de closes nas personagens e o seu isolamento no quadro. Com exceção de alguns planos conjuntos, a maioria dos diálogos se dá em campo-contra-campo. São poucos os planos em que as personagens conversam no mesmo quadro. Essa característica, aliada a descontinuidade espacial, torna a montagem um elemento importante e fortemente presente na narrativa do filme. É o caso da cena em que Mamma Roma vai buscar seu filho no parque de diversões. De um lado existem os planos da mãe, e de outro, os do filho. Ela o vê e o segue. Ele anda e conversa com os amigos. Em seguida, mãe e filho conversam em campo-contra-campo. O fundo do quadro nunca é o mesmo. Mamma Roma e Ettore parecem, em diversos momentos, estarem em lugares diferentes. Não há sequer um plano em toda a seqüência que abarque conjuntamente ambas a personagens, situando-as no espaço. A montagem de Nino Baragli é estilizada e evidente. Em meados dos anos 60 Pasolini desenvolve o conceito de “cinema de poesia”, que, grosso modo, seria o cinema que transparecesse a sua linguagem, que evidenciasse seus mecanismos, principalmente a câmera e a montagem. Esta teoria foi proclamada pela primeira vez no Festival de Cinema de Pesaro em 1965 e está contida no seu livro “Empirismo Eretico”. Mamma Roma, no entanto, realizado em 1962, já é um filme poético. A montagem de Nino Baragli salta aos olhos, ainda que busque uma linearidade narrativa.

Uma seqüência importante do ponto de vista da linguagem fílmica e da construção dramática é a que Mamma Roma e Ettore dançam tango no quarto. É uma seqüência que se preocupa com a construção espacial, visto que as personagens percorrem todo o quarto. A maioria dos enquadramentos possui mãe e filho num mesmo plano, elemento escasso no filme, e dessa forma os diálogos se dão com as personagens abraçadas, próximas. É um momento de intimidade, amizade e cumplicidade entre elas. A música tema do filme, “Violino Cigano” na voz de Joselito, colabora para transformar essa seqüência num momento de lirismo e poesia.

Um plano-seqüência ímpar no filme é quando Mamma Roma sai às ruas para se prostituir. Ela está sentada com seu grupo de amigas quando impulsivamente se levanta e diz que vai embora. Mamma Roma começa andar e é acompanhada por Biancafiore. Depois Biancafiore se despede e se afasta. Entra no quadro um policial, que ocupa o lugar da amiga que se foi, ambos andam e conversam. Mamma Roma lhe conta a sua vida e em seguida o policial é substituído por outro homem, que caminha ao lado da personagem, continuando a conversa já iniciada. Por último, um grupo de quatro pessoas substitui o último homem e caminha com Mamma Roma até que a seqüência acabe. Durante todo o trajeto, enquanto Mamma Roma caminha e as personagens entram e saem de quadro, a câmera realiza travellings de afastamento e movimentos circulares que se aproximam de uma dança. O plano-seqüência dura quatro minutos e meio. A elaboração pictórica de Pasolini é ostensiva: as personagens, no primeiro plano, são iluminadas e destacadas de um fundo negro. Nesse fundo, dezenas de pontos luminosos provenientes dos postes de luz formam desenhos abstratos. A composição espacial é abolida. Conforme a câmera baila, o fundo do quadro parece adquirir liberdade e adquire movimentos ora mais velozes ora menos, com os flashes de luzes rabiscando no espaço fantástico. Essa é uma seqüência que faz jus ao conceito de “cinema de poesia”, já comentado acima.

O sagrado como condição ou destino de suas personagens é um traço marcante na obra de Pasolini e, especialmente, em Mamma Roma, Accattone, A Ricota, O Evangelho Segundo São Mateus, Gaviões e Passarinhos, O que são as nuvens?, A Terra Vista da Lua e A Sequência da Flor de Papel. Como já foi dito, Pasolini vê no subproletariado a resultante mortificada das lutas sociais aliada a uma pureza simbólica. Este sentimento do sagrado é explicitado por alguns elementos estéticos. A fotografia extremamente luminosa de Tonino Delli Colli é um deles ( Tonino também fez a fotografia de O Evangelho Segundo São Mateus, utilizando-se dos mesmos princípios de iluminação). O sagrado-figurativo também é evidenciado pelos enquadramentos que enfocam as personagens como figuras de arte sacra, como por exemplo, a cena do casamento de Carmine. O plano geral enquadra a mesa comprida com os convidados. A parede, ao fundo, possui uma decoração que simula uma porta ou um vitral circular típicos de Igrejas Católicas. É exagero dizer que o quadro ilustra a Santa Ceia, mas não é errado dizer que há uma sacralização na imagem. O momento de maior apelo metafísico é a última seqüência do filme, em que Ettore morre. O garoto foi pego em flagrante, roubando. Por isso vai para a prisão. Como está doente, fica numa ala para recuperação. Ao ouvir um homem cantando “violino cigano”, Ettore se emociona e reage impulsivamente querendo sair do lugar para se encontrar com sua mãe. Como punição pelo mau comportamento, o garoto é preso em uma solitária, onde passa a noite inteira. Ettore é amarrado deitado, com os braços abertos e as pernas unidas, lembrando Cristo na cruz. A sala é escura, e pela janela entra luz suficiente para iluminar a criatura, que grita, lamenta e chama por sua mãe. “Mamma , estou morrendo... por quê eles fizeram isso comigo?”. A montagem intercala planos de Ettore agonizando e planos de Mamma Roma pensando no filho preso. Na solitária, a câmera realiza três movimentos semelhantes que valorizam a composição sacralizada da imagem: ela sai de um plano fechado no rosto de Ettore e num trevelling de afastamento cria uma imagem da cruz em perspectiva e faz uma referência explícita à pintura quatrocentista de Andrea Mantegna: “Cristo Morto”. A cada movimento da câmera de Pasolini a condição física, psíquica e emocional do garoto é diferente, até que no último movimento Ettore já está morto. A trilha sonora de Vivaldi sacraliza ainda mais o momento. O espectador se sente comovido, apiedado. Ettore foi apresentado como um garoto carismático, dono de uma candura emblemática. A estrutura repressivo-social o eliminou, assim como fez com Jesus Cristo. O último plano do filme é Mamma Roma, desesperada com a morte do filho, olhando pela janela de seu apartamento a cidade de Roma. O que vê? Um plano geral fixo mostra prédios e construções romanas, uma cidade que está se expandindo para as periferias. Mas no centro do quadro, afirma-se impotente a Catedral de São Pedro. E Mamma Roma a olha com uma expressão desesperada, é como se questionasse sua fé ao mesmo tempo em que se resigna diante de Deus e do destino que lhe confiou.
É muito comum na obra de Pasolini o uso da alegoria e da metáfora. Em Mamma Roma se poderia dizer que a personagem que leva o nome do filme é a personificação da cidade de Roma, cujos filhos morrem como Ettore, oprimidos pela miséria e injustiça social.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A propósito de liberdade

O filme era de ficção, com roteiro definido e tudo o mais. Todavia, Pasquale possui um talento incrível para improvisar e roubar da realidade um material precioso. Fiz assistência de direção no seu filme que rodamos na Sicília no mês passado. Uma história de amor tragicômica que ironiza o catolicismo, mas não só. Um filme de humor cínico: dois losers, Maria e Manlio, são voluntários em uma paróquia e levam a hóstia à casa de velhinhos doentes. Eles vivem aventuras, descobrem o rock, a beleza. Surge entre eles uma história de amor torta. Em uma manhã, enquanto tomávamos o café, Pasquale decidiu: Vamos à casa de uma querida amiga. Se chama Betsy e tem 80 anos. Levamos a câmera e apenas um refletor de 1000. Vamos ver o que acontece. Chegando à casa de Betsy descobri que apesar de ser cega, manca, viúva e de morar sozinha, se vira melhor do que muito idoso por aí. Mas a solidão encontra sempre uma ocasião de esquive e a nossa presença ali destampou em Betsy a vontade de falar, falar, falar. Contar causos, cantar músicas, era um espetáculo de si própria feito a um público que ela não vê. Mamma mia, que personagem.

No filme, Maria, a protagonista loser, está apaixonada por Manlio, que a despreza. Quando vai à casa de Betsy entregar-lhe a hóstia e rezar a Ave Maria, Maria cai em prantos e pede conselho à velha senhora. Betsy foi orientada: finja que é realidade, que Maria é uma sua amiga e que está te contando um problema. Tente ajudá-la.

Pronto. Betsy, que não é atriz profissional, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da solidão na ocasião, interpretou um personagem estupendo que, na verdade, era si mesma. Foi incrível. Era como se a ação de interpretar a libertasse da responsabilidade de seu próprio caráter. Como se a sua intimidade real legitimada pela câmera do cinema fosse transportada espontaneamente ao campo da ficção. Veio fora um diálogo impressionante e inesperado:

- Maria, você é uma pessoa doce, maravilhosa, sensível. Imagino o quanto está sofrendo por aquele cretino. Manlio! Que nome! Esse Manlio aí vale a pena é? Eu acho que não. Aposto que ele é duro de coração. É isso. Duro de coração! E quando um homem é duro de coração só tem uma saída: dar-lhe uma porrada e bye bye. Enche esse Manlio de porrada e vai embora cantando: Tu non sei l’amore... non sei l’amore... (uma canção italiana antiga muito popular).

Em outra cena, Maria está feliz porque Manlio a convidou para uma viagem que para ela é como se fosse uma lua de mel – fazer uma peregrinação com uma velha que está para morrer. E então Betsy lhe diz com a sua voz aguda de quem tem oitenta anos e usa dentadura:

- Ah Maria, que lindo. Uma viagem com Manlio! Estou contenta por você. Olha, faça a peregrinação direitinho e chegando lá agradeça a Nossa Senhora viu? Lembre-se de rezar e agradecê-la por tudo. Mas olha, vou te contar uma coisa: é claro que em uma peregrinação o sentimento cristão é o que interessa, rezar, agradecer a Nossa Senhora, mas sabe Maria, você não pode se esquecer que o sexo também é muito importante. É... sexo... sobre esse tal de sexo as pessoas nunca falam, você já percebeu? Nós, mulheres somos muito mal informadas sobre sexo você não acha? E as esposas então, coitadas, tenho dó! Na verdade o sexo é uma coisa muito importante Maria... claro, não é que eu saiba muito sobre ele. É uma pena! Sabe, na China existem laboratórios de sexo em que as mulheres vão e recebem informações, explicações, tudo! Aqui o que temos? Nada! Se eu fosse jovem eu pegaria imediatamente um avião para a China e voltaria para cá experiente, praticamente uma professora!

Foi um momento hilariante para todos nós, inesperado, vivo. Betsy foi aplaudida durante minutos, assovios e tudo o mais. Ela sorria, estava contente de ter interpretado, de ter sido reconhecida, nossa musa. E com timidez altiva nos revelou o sonho não realizado de ter sido atriz...

Entretanto, no dia seguinte, a velhinha nos ligou. Por telefone ponderou: Sabe, estava pensando que ontem fui incoerente no meu diálogo com Maria. Maria estava sofrendo porque Manlio não a amava. Mas não é com violência que se resolve essas coisas do coração. Não acho que Maria deve espancá-lo, mas tratá-lo com amor e respeito... Deve cantar assim pra ele: "non mi lasciare, amore, amore... dovunque andare ti cercherò..."( não me deixe, amor, aonde você for te procurarei... - uma música antiga italiana). E mesmo o sexo, penso que seja algo sagrado, ligado ao matrimônio... E por aí foi... Betsy, que não é atriz, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da sua solidão naquela ocasião, estava em culpa de ter interpretado a si própria, decodificando improvisadamente a sua ideologia reprimida. Mas nesta contradição do ser, coabitando-se autor e personagem, Betsy optou por não legitimar-se. Pois é, terreno intricado para uma senhora: depois de oitenta anos de vida afrontou os valores culturais da sua sociedade. Não agüentou. A liberdade é um osso duro de roer...

sábado, 11 de outubro de 2008

dança (música)


MixwitMixwit make a mixtapeMixwit mixtapes

dança (texto)

A caixinha de música ficava ali, imóvel sobre a cabeceira da sua cama. Bastava que Margarida a abrisse para pegar alguma jóia nela guardada que Gymnopedie escapava, assim, apressada, sem nem pedir licença. Gymnopedie livre compassava o bailar do casal de madeira que rodava sobre o pequeno salão circular, isolado da realidade por uma estufa de vidro. Aprisionados, dançavam: ela em um vestido longo vermelho, ele em fraque. Quando menina Margarida assistia aos dançarinos esboçando neles o desatino de tornar-se bailarina. O defeito da perna. Não deu.

Margarida cresceu. Acreditava que teria por amante um homem elegante como o boneco de fraque que girava no salão da sua caixinha de música. Mesmo manca de uma perna sentia-se apta a dançar com ele por toda a vida. Gymnopedie lhes faria resvalar, ir, voltar, virar, revolver na enorme sala de vidro. Não deu. Gymnopedie traiçoeira, nefária, maldita.

Margarida envelheceu solteira com a caixinha de música sobre a cabeceira da cama. Foram setenta anos de longas noites em que a abria buscando distração: Gymnopedie fugida a conduzia por lugares quiméricos. Gymnopedie alquimista, utópica, fascinadora.

Naquela noite de menos três graus Margarida não conseguia dormir. Tossia, suava, passava, sozinha. Com a cabeça escorada em medos resolveu abrir a caixinha. Ela usava um vestido vermelho rodante. Um homem elegantemente a tomou nos braços, girando com ela pelo salão de vidro. A claridade cintilava nos detalhes do seu vestido que se agitava alforriado. Gymnopedie emancipada, bendita, serenava. A velha senhora não existia mais.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Pequenina


A menina agitada
Sente-se injustiçada
Quando lhe dão chá
Para se acalmar.
Não é de chá que ela precisa,
Nem maracujá ou homeopatia.
A menina deseja se tocar
Brincar com a mangueirinha do chuveiro.
O banho é o momento sagrado
Para a pequena
Se acalmar
Se conhecer
Se conquistar.


(Imagem: O Galo. Chagall, 1929)